15 setembro 2025


Memórias à mesa: - A broa da "Tia Quinhas"

        Se há memória que me acompanha desde criança é o aroma da broa de milho da “Tia Quinhas”. Mais do que alimento, era um ritual, um pedaço de tradição que unia toda a família em torno da sua mesa e da sua generosidade. Houve sempre uma presença discreta mas imensa na minha infância e na vida de toda a família: a tia Quinhas. Era a mais velha de dez irmãos, mas nunca quis casar. Em vez disso, dedicou-se inteiramente aos meus avós, sendo para nós, sobrinhos, como uma segunda avó. Curiosamente, nunca soube a origem da sua alcunha. Chamava-se Maria — como quase todas as mulheres da sua geração — e, ainda assim, ficou para sempre conhecida por todos como “Quinhas”. Talvez tenha sido um capricho da infância, talvez apenas um modo carinhoso de a distinguir entre tantas Marias. O certo é que ninguém mais a tratava pelo nome de batismo.

         Os primeiros anos da minha infância foram passados na casa dos meus avós, onde a minha tia também vivia. Talvez por isso entre nós existisse um carinho especial, uma ligação feita de proximidade e de gestos simples que marcaram para sempre a minha vida.

        Às quintas-feiras, dia de feira em Barcelos, lá ia ela vender os produtos da terra e quando voltava trazia sempre um mimo para os mais novos: um “pastel”, como nós chamávamos aos bolos, que nos sabia a festa. Mas, por mais deliciosos que fossem, nada se comparava ao sabor da broa, ao aroma da broa quente que ficou gravado em mim como o perfume da infância.

        O fabrico da broa era um acontecimento. Tive a sorte de aprender com ela todo o processo, cheio de rituais quase sagrados: amassar a farinha na “masseira” antiga no dia anterior, benzer a massa antes de a deixar levedar, aquecer o forno que ficava na própria cozinha e, no momento de o tapar, havia uma regra inquebrável — as portas e janelas da casa não podiam ser abertas até ao momento de o destapar. Tudo se fazia com respeito, quase como se a broa fosse uma bênção que exigia silêncio e devoção. Um ritual que se repetia de quinze em quinze dias, o cheiro quente e reconfortante da broa enchia a casa e, como era hábito da tia, repartia-se por toda a família. Cada broa era uma partilha de amor e cuidado, e ninguém ficava de fora. Era mais do que pão, era partilha, era afeto transformado em alimento.

A tia Quinhas deixou-nos muito mais do que lembranças. Deixou-nos o sabor do pão partilhado, a lição de que as coisas mais simples podem ser as mais importantes, e a certeza de que o amor se sente também no cheiro que nos acolhe em casa. Com a sua simplicidade ensinou-nos que o amor não precisa de grandes discursos. Vive-se nos gestos simples, na paciência do cuidado, no prazer de dar sem esperar nada em troca. Para mim, será sempre a memória doce de um lar dentro do lar, de um coração que soube ser mãe, irmã, filha, tia e avó… tudo ao mesmo tempo.


 

24 comentários:

  1. Um texto delicioso, cativante e extremamente reconfortante.
    Adorei cada parágrafo, sempre ansiosa pelo seguinte. Não imagina as lembranças que me trouxe esse ritual, em tudo semelhante ao que vivi na minha primeira infância.
    A diferença está apenas na farinha, A sua é/era de milho e a minha de trigo. :)
    As memórias olfactivas são tão fortes e marcantes quanto as visuais.
    É um gosto ler e reler estas suas Crónicas, escritas com tanto carinho e sentimento. E, com isto, estou quase a chorar...

    Um abraço.

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    1. Muito obrigado Janita.
      Uma forma de mantermos vivas pessoas que nos marcaram a vida e que já cá não estão é recordando-as.
      Concordo consigo, as memórias olfativas são tão fortes e marcantes quanto as visuais.
      Um abraço.

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    2. Menino e moço, até vir para Macau, as vizinhas davam-me broa e pão acabados de fazer.
      Com manteiga, a broa com azeite e sal, eram de chorar por mais.
      Já todas morreram, infelizmente.
      E já não podem mimar "o menino".
      Abraço

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    3. Então foi um "menino mimado".
      Tempos em que o pão era um mimo!
      Abraço.

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  2. É o pão que a minha avó paterna cozia que me está na lembrança .
    Quando havia matança de porco , a avó fazia umas merendeiras recheadas com carne de porco em vinha d'alho, para todos os netos.
    Chamávamos-lhes "ratinhos", não sei porquê
    Eram uma delícia!
    Ainda bem que temos boas recordações da infância.
    Nas aldeias era assim.

    Abraço

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    1. Na aldeia podíamos não ter muito, mas tínhamos "tudo"!
      Abraço.

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  3. Tenho memórias semelhantes da casa da minha aváo com o pão alentejano e as popias.

    Abraço, boa semana :)

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  4. Pāo de trigo caseiro era o melhor pāo. Cozido num forno de lenha. Ou seria de carvāo? Nāo me recordo. Sei apenas que eram amassados num alguidar grande, que a minha avó se benzia, antes ou depois de amassar e que fazia uma cruz na massa. Tapava-a para a levedar. Entretanto, fazia uns pāes pequenos, entrançados, com açúcar, só para mim. Adorava ir a casa dos avós para receber todos os mimos que eles tinham para me dar.
    Estou a prever muitas lembranças da minha parte também.

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  5. Um texto maravilhoso que nos leva ao seu passado, tendo hoje como protagonista a sua tia Quinhas e as suas preciosas broas de milho. Doces memórias, carregadas de amor e ternura que perduram para sempre no coração.
    Fez-me relembrar o ritual da minha avó a fazer o pão e como era fantástico o cheirinho dele a cozer no forno a lenha. Tempos mágicos.
    Um grande abraço

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    1. Muito obrigado Maria.
      Foram tempos muito felizes. Rituais que se perderam no tempo mas as pessoas que os executavam permanecem na nossa memória.
      Abraço.

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  6. Siempre hay una tía soltera, que decidió no casarse y que al no tener hijos se vuelca en atenciones con los sobrinos.Nunca he comido pan de maiz, aquí el que shace en las panaderías es pan de trigo y es el que estoy acostumbrada a comer.
    Es un placer saludarte.

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  7. R.Correia

    que relato doce e comovente! Seu texto transforma o aroma da broa da Tia Quinhas em muito mais do que memória: é afeto, tradição e cuidado que atravessam gerações. Adorei como você consegue tornar visível o invisível o amor silencioso, os rituais quase sagrados, a paciência no gesto de repartir. É uma lembrança que aquece e ensina: o amor verdadeiro se mostra nas pequenas coisas, nos cheiros, nos sabores, na presença constante. Li sentindo o cheiro da broa e o calor de uma família unida, e isso é um dom raro que a escrita transmite.

    Abraço
    Fernanda

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  8. Muito obrigado pela sua visita e pelo seu comentário.
    Tive uma infância muito feliz rodeada de uma família numerosa que repartia sempre o que tinha.
    Hoje valorizo muito todos esses ensinamentos, simples mas essenciais.
    Um abraço.

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  9. Li o seu texto e pude também recordar os tempos da minha infância em que também se cozinhava, semanalmente, o indispensàvel pão de milho, popularmente conhecido como broa.,
    Tempos que não voltam mais e nos deixam a saudade do saboroso pão de milho.
    Bom fim de semana.
    Abraço de amizade.
    Juvenal Nunes

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  10. Olá, R. Correia
    Um bálsamo ler este lindo texto que nos traz
    vozes da infância, fase da vida que fica para sempre.
    Tão bom recordar momentos tão belos com a família,
    à roda da mesa. Lembro - me de momentos similares
    que não esqueço.
    Bom domingo.
    Abraço.
    Olinda

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  11. Também me lembro muito bem da broa da minha avó. E de todos os detalhes, que no Minho deviam ser todos muito semelhantes.
    Boa semana.
    Um abraço.

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    1. Olá Jaime, sim a broa era semelhante mas cada uma tinha um sabor único.
      Boa semana.
      Abraço.

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  12. Olá, R. Correia!
    Toda terça, hoje, saboreio a broa da sua tia... é uma preferida minha.
    Tinha uma tia que sempre me levava uma broa de milho e me levava quando me visitava.
    Memórias afetivas são lindas e necessárias para alimentarem nossos sonhos.
    Gostei muito de encontrar a broa airosa aqui.
    Tenha um outono abençoado"
    Abraços fraternos de paz

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    1. Muito obrigada pela sua visita e pelas suas palavras.
      Bom outono para si também.
      Abraço.

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