22 setembro 2025


O candeeiro da sala.

            As minhas recordações de infância estão repletas de aventuras simples, mas cheias de magia. Cresci rodeado pelos meus primos e a casa dos meus avós era o nosso Forte. Juntos transformávamos qualquer recanto num verdadeiro parque de diversões. Não havia brinquedos modernos, mas havia imaginação — e isso bastava.

            O meu avô, carpinteiro de mãos hábeis e coração generoso, deixava-nos explorar as suas ferramentas. Com pedaços de madeira, dávamos vida a barcos que depois navegavam no tanque usado para regar os campos e lavar as roupas. Com as sacholas, fazíamos ondas, transformando aquele tanque num oceano em miniatura. Claro que as minhas tias não achavam tanta graça, afinal os cabos das sacholas ficavam todos farpados e, no dia seguinte, eram elas que precisavam das ferramentas para trabalhar.

            Entre as maravilhas que o meu avô construiu para mim, houve uma que nunca esqueci: uma roda em madeira com guiador que apoiava ao ombro e que, na minha imaginação, era uma moto. Corria pela casa com a novidade, o soalho de madeira amplificava o barulho das minhas "acelerações", e acho que, instantes depois de dar início às minhas corridas já o meu avô se tinha arrependido da sua generosidade. J

            Mas a memória mais divertida que guardo aconteceu pouco tempo depois da chegada da luz pública às ruas da aldeia. Eu e um primo, companheiro inseparável das minhas traquinices, tínhamos acabado de aprender com o meu avô a fazer uma fisga. Era a nossa nova arma secreta e tínhamos que a testar.

            Na altura, instalaram dois postes de iluminação junto à casa do meu avô. Achámos prudente não disparar contra o que ficava próximo da nossa entrada, e elegemos o outro, mais afastado, no caminho que levava à casa do vizinho. Á vez, os dois recrutas com a sua nova arma, tentavam acertar no alvo. Depois de algumas tentativas falhadas, lá conseguimos acertar (por uma questão de justiça acho que até foi o meu primo o autor da fisgada certeira… e a partir a lâmpada)!

            Fugimos apavorados, mas também bastante orgulhosos da pontaria. O verdadeiro problema veio mais tarde: o vizinho, que ao longe tinha observado toda esta cena, foi logo fazer queixa ao meu tio. Acusou-nos de lhe termos partido o candeeiro da sala. O meu tio, ao ouvir tão grave acusação, não quis perder tempo. Homem de temperamento rápido e com grande sentido de justiça, decidiu de imediato repor a ordem: pena aplicada - uma valente sova. Na verdade o vizinho ainda não tinha luz elétrica em casa e continuava a viver à luz das velas. Mas como o poste ficava mesmo em frente às janelas da sua casa, iluminava-a todas as noites, e para ele aquela maravilhosa lâmpada era o seu precioso “candeeiro da sala”.

            Foi preciso muito esforço da nossa parte para explicar ao meu tio o que realmente tinha acontecido. ”Apenas” tínhamos partido a lâmpada do poste da rua… Só depois de muita conversa conseguimos evitar a sova que parecia certa. A pena foi reduzida para um “puxão de orelha”, uma reprimenda e uma lição: nunca mais testar a pontaria em candeeiros… pelo menos não tão perto de casa!

            Ainda hoje me rio quando recordo esse episódio. São histórias como esta que mostram como a infância, mesmo sem grandes recursos, pode e deve ser um tempo de liberdade, criatividade e descobertas — momentos que ficam gravados na memória para sempre.

 

2 comentários:

  1. As figas eram armas poderosas nas mãos das crianças, sem dúvida. Até os mais velhos as usavam para ir à caça de pássaros. Também usavam armadilhas. Pobres passaritos.
    Essa do candeeiro era de prever. : ))
    Foi muito traquinas!

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  2. Verdade. Histórias assim mostram que a infância, independente de recursos materiais, pode ser um período de muita criatividade, liberdade e descoberta. São lembranças que moldam quem somos e que permanecem gravadas na memória, lembrando que a alegria e a imaginação muitas vezes são recursos valiosos que não dependem da riqueza.

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