06 novembro 2025


Quinta-feira é dia de Feira.

            Hoje é quinta-feira, e aqui em Barcelos isso tem um significado muito especial. É dia de Feira. A história da feira de Barcelos remonta ao século XV, quando foi autorizada pelo Rei D. João I em 1412 para ser um evento anual. A feira foi evoluindo ao longo dos séculos, mudando de duração, local e dia de realização, até se fixar no Campo da República (antigo Campo da Feira) e passar a ser realizada semanalmente às quintas-feiras. Por isso aqui na minha terra, desde sempre, a quinta-feira é dia de Feira. É quase uma lei não escrita, enraizada na alma das gentes daqui. Se o domingo é para ir à missa, a quinta-feira é para ir à Feira.

            A feira é um mundo à parte. Cada banca conta uma história. Das louças coloridas às mantas de lã, de todo o tipo de vestuário, frutas e legumes, animais vivos, dos cestos de vime aos galos de Barcelos, há um encanto que nos transporta a outros tempos. Caminhar por entre todas aquelas bancas e tendas cheias de vida é quase como percorrer as páginas de um livro antigo. Um livro escrito com tradição, trabalho e alegria.

            Há lugares que ficam gravados em nós não só pelo que vemos, mas pelo que sentimos e a Feira de Barcelos é, para mim, um desses sítios. Lembro-me bem das histórias que a minha mãe e as minhas tias contavam, dos tempos em que ainda iam a pé, com os cestos à cabeça, equilibrados com aquela elegância natural de quem cresceu habituada ao esforço. Outras vezes, iam com o meu avô, no carro de bois, que rangia devagar pelas estradas de terra batida. Era uma viagem longa, mas cheia de esperança. Esperança de vender o que a terra dava e de trazer algum dinheiro para casa.

            Mais tarde, com as estradas melhoradas, começou a vir a “camioneta” à aldeia. Era uma festa! A feira deixava de ser apenas um lugar de comércio, era o ponto de encontro, o dia diferente da semana, o momento em que se viam caras conhecidas e se trocavam novidades. Tudo o que a terra produzia tinha valor. Levavam-se sacos de batatas, feijão, cebolas, flores e, claro, as laranjas, que sempre foram o orgulho da nossa aldeia, conhecida pela boa laranja, doce e perfumada. Os pares de frangos eram escolhidos “a dedo”. Os mais bonitos, de crista vermelha eram os selecionados para chamar a atenção dos compradores.

            Recordo-me de andar de mão dada com a minha mãe, maravilhado com a confusão organizada da feira. Andar de banca em banca, de tenda em tenda à procura das botas ou das calças que eu precisava, mas sempre regateando o preço que ela podia pagar. As galinhas cacarejavam num canto, o vendedor de castanhas apregoava em voz alta, e havia sempre alguém disposto a negociar o preço de um par de sapatos ou de uma faca artesanal. Era um espetáculo vivo, cheio de sons, cores e cheiros que se entranhavam na memória. E no meio desse rebuliço todo, havia sempre espaço para os pequenos prazeres. Quando a feira corria bem, lá vinha o mimo, os “pastéis”, ou o pão doce simples que sabiam à recompensa e ao carinho de quem queria ver os filhos felizes.

            Naqueles tempos, até a forma de se despedirem mostrava a importância da feira nas nossas vidas. Em vez de um simples “até para a semana”, dizia-se “até à feira”. Era a medida do tempo das gentes do campo. O calendário não se fazia pelos dias, mas pelas feiras. Entre uma e outra passava-se a vida, com o trabalho da terra, as colheitas, as lidas do dia-a-dia, sempre com a próxima quinta-feira no pensamento.

            A Feira de Barcelos não é só comércio. É memória viva, é tradição, é o coração do Minho a bater forte todas as quintas-feiras. Ainda agora, quando oiço o burburinho das bancas e sinto o cheiro das castanhas no ar, parece que o tempo volta atrás. Hoje já não há carro de bois nem cestos à cabeça, mas o encanto é o mesmo. A feira continua lá, fiel à sua quinta-feira, como sempre. E eu continuo a sentir o mesmo orgulho e a mesma ternura, porque a Feira de Barcelos é, e será sempre, parte da minha história.


29 outubro 2025


Memórias da “Benda da Tia Lúcia”

            A “Benda da Tia Lúcia”, escrita assim de propósito, à moda antiga da minha aldeia minhota, onde o “B” tomava o lugar do “V” com a naturalidade de quem fala a língua do coração. Diziam os mais velhos, entre risos e certezas, que os “Vês” eram para a gente fina. Nós, gente simples do campo, ficávamos com os “Bês”, que soavam mais verdadeiros, mais nossos.

            Na minha infância, a “Benda da Tia Lúcia” era muito mais do que uma simples mercearia. Era o coração da nossa aldeia. Nessa época, o correio não chegava porta a porta como hoje. Se queríamos saber notícias de familiares distantes, como o meu pai que estava emigrado em França, ou acompanhar os acontecimentos do país e do mundo, tínhamos de nos deslocar até lá.

            Todos os dias, por volta do meio-dia, a Tia Lúcia recebia a correspondência pelo carteiro que vinha da cidade. Eu e a minha mãe íamos com a esperança de encontrar uma carta do meu pai, cheia de carinho e saudade, enquanto o meu avô aguardava ansioso pelo jornal semanal, pronto para se atualizar com as notícias frescas e comentá-las com quem estivesse à volta.

            A “Benda” era um mundo à parte. O cheiro da farinha, do pão fresco e dos enchidos misturava-se com o aroma doce das bolachas e do café acabado de moer. Lá comprava-se de tudo: mercearia para o dia-a-dia, farinha, calçado, pequenas ferramentas e até presentes improvisados para qualquer ocasião. Mas, mais do que produtos, a “Benda” era o lugar onde a vida da aldeia se encontrava.

            Nos dias em que o mau tempo não deixava trabalhar a terra, os mais velhos juntavam-se ali para pôr a conversa em dia. O copo de vinho branco estava sempre à mão, e a sande de chouriço era uma iguaria, acompanhada de risadas, histórias de outrora e comentários sobre os vizinhos. A luz que entrava pela porta parecia aquecer o espaço, iluminando as faces curiosas das crianças e o brilho nos olhos dos adultos. Cada canto da “Benda” contava uma história. A balança decimal rangendo sob o peso dos produtos, o tilintar das moedas, o ranger da porta quando alguém entrava, o murmúrio constante das conversas entre clientes e o barulho da mó do moinho sempre a trabalhar.

            Eu adorava ir à “Benda da Tia Lúcia”. Aquilo era uma pequena aventura, cheia de cheiros, vozes e cores. Lembro-me de ficar a observar a Tia Lúcia atrás do balcão, com o avental impecavelmente branco e o lápis sempre atrás da orelha, sempre pronta a pesar o açúcar, o feijão ou a enrolar o bacalhau em papel. E o melhor de tudo vinha no fim, o troco. Em vez de moedas, muitas vezes ela completava o valor com uma meia dúzia de rebuçados coloridos, embrulhados em papel brilhante. Eu saía de lá com o coração leve e o sabor doce na boca, como se tivesse recebido o maior tesouro do mundo.

            Recordar a “Benda da Tia Lúcia” é como voltar no tempo e sentir novamente a vida simples, mas intensa, da nossa aldeia. É ouvir o riso, sentir o cheiro do pão, o calor humano e a expectativa de uma carta que podia mudar o dia. Mais do que uma mercearia, era o centro da nossa comunidade, um lugar onde memórias e afetos se cruzavam todos os dias.


 

20 outubro 2025


No silêncio do oratório.


         Finalmente chegou o Outono. Uma entrada invernosa. A chuva forte e intensa, o vento nas árvores e o frio que já se insinua pelas frestas trouxeram consigo o cheiro dos tempos antigos. Este domingo, com o céu pesado e a chuva a cair de forma violenta como há muito não via, senti-me transportado à minha infância. Viajei até à casa dos meus avós, onde as estações marcavam o ritmo da vida e até o mau tempo tinha o seu ritual.

        Nasci no seio de uma família profundamente religiosa, no coração do Minho rural. A casa dos meus avós paternos, onde passei a infância, era como tantas outras da aldeia. Uma cozinha ampla, o verdadeiro coração da casa com lareira sempre viva e o forno pronto a cozer o pão que alimentava dias inteiros de trabalho. Ao lado, o quarto dos meus avós; mais além, a sala do meio, onde dormiam as minhas tias, eu e a minha mãe, por fim, a “sala melhor”. Era assim chamada porque era um lugar que perdurava quase imaculado pois permanecia fechada quase todo o ano, como um pequeno santuário doméstico.

        A “sala melhor” só se abria em dias de festa. Na Páscoa, no Natal ou para receber alguma visita de respeito. Mas havia outra ocasião solene, envolta em temor e devoção. Eram os dias de grandes trovoadas. Quando o céu se cobria de negro e o trovejar fazia estremecer as vidraças aos quadrados, o meu avô mandava abrir a sala e fechar bem as empenas das janelas. À luz trémula das velas, todos nos reuníamos em redor do “oratório”. Um pequeno nicho antigo em madeira escura, ricamente ornamentado no topo com entalhes decorativos. No interior, protegido por uma porta de vidro, um crucifixo e uma imagem da Virgem Maria. O conjunto repousa sobre um móvel de gavetas com um pano branco de linho, transmitindo um ambiente de pureza e devoção.

        Enquanto o vento zumbia lá fora, o cheiro dos ramos de oliveira benzidos na Igreja da aldeia por altura do domingo de ramos queimando lentamente na lareira, misturava-se com o murmúrio das orações. De mãos direitas, eu rezava junto da minha mãe, pedindo a Jesus que a tempestade se fosse embora. Havia medo, sim, mas também uma paz que nascia daquela fé partilhada, daquele momento em que o mundo parecia caber dentro de uma sala iluminada por velas.

        Hoje, quando recordo esses momentos, percebo que aquela divisão daquela casa Minhota, aquela “sala melhor” era mesmo a “melhor” repartição da casa porque guardava mais do que móveis e retratos antigos. Abrigava a fé simples e profunda de uma família minhota. Uma forma de estar no mundo onde o sagrado e o quotidiano andavam de mãos dadas, uma União em tempos de incerteza e um consolo que só as memórias de infância conseguem trazer.

 



 

14 outubro 2025


Um gosto que ficou na memória!

        No início dos anos 80, quando a escola primária ainda cheirava a giz, ainda nos sentávamos nas carteiras de madeira e a lancheiras eram sacolas de pano, o fim do ano letivo era um momento mágico. Não havia melhor notícia do que o tão esperado passeio da escola, o que hoje chamam de visita de estudo, mas que, para nós, era quase uma expedição ao desconhecido.

        Nesse ano, o destino era o Alto Minho! A viagem, vista hoje, parecia curta, uns quantos quilómetros apenas. Mas, com as estradas sinuosas de então e as camionetas (ainda não lhes chamávamos “autocarros”) barulhentas que gemiam a cada subida, a viagem transformava-se numa verdadeira odisseia. Entre curvas, solavancos e o cheiro a gasóleo misturado com gargalhadas e cantorias, aquelas horas pareciam não ter fim. Ainda assim ninguém se queixava. Para nós cada minuto longe da aldeia era uma aventura. Entre paragens e muitas brincadeiras uma localidade ficou gravada na minha memória: Vila Praia de Âncora. Foi lá que visitámos uma fábrica de lacticínios, um mundo de cheiros e sons diferentes de tudo o que eu conhecia. As máquinas zumbiam, os trabalhadores usavam toucas brancas e, no ar, flutuava um aroma adocicado e fresco que eu não sabia ainda identificar.

        Foi então que nos revelaram o segredo: iogurtes. “Iogurtes Âncora”, um nome que eu já ouvira, mas cujo sabor nunca me tinha passado pela língua. Ficámos todos fascinados com o processo do leite que se transformava, quase por magia, naquela iguaria cremosa e misteriosa.

        No final, ofereceram-nos dois iogurtes. Um cheio, pronto a saborear, e outro vazio, mas com tampa para recordação. Alguns colegas não resistiram e abriram o iogurte ali mesmo, sentados no chão, colheres improvisadas em mãos e sorrisos de pura felicidade.

        Eu, prudente e orgulhoso, decidi guardar o meu. Queria levá-lo para casa, mostrar à minha mãe o prémio daquela aventura e partilhar o sabor da novidade. Coloquei-o cuidadosamente na sacola, longe do sol, e segui viagem com o coração cheio de expectativa.

        Mas o destino, ou talvez a gula alheia, pregou-me uma partida. Quando o passeio terminou e corri para mostrar o meu tesouro, encontrei apenas a embalagem vazia. O iogurte tinha desaparecido. Não derretido nem evaporado, mas certamente subtraído pela ação de alguma mão mais rápida, gulosa e impaciente do que a minha.

        Fiquei a olhar para o copinho vazio, incrédulo, sem saber se havia de rir ou chorar. Enquanto uns lambiam as colheres com ar satisfeito, eu percebia que o meu primeiro iogurte tinha sido saboreado… mas não por mim.

        E foi assim que, naquele passeio que acabou por se revelar uma verdadeira visita de estudo, aprendi duas lições: a primeira, que o sabor da novidade pode ser tão intenso mesmo quando nos é roubado; e a segunda, que há alturas em que o tempo não espera, nem pelos mais pacientes e cuidadosos!

        O meu primeiro iogurte ficou na memória. Mas o gosto... esse, ficou para a imaginação.


 

06 outubro 2025


Retrato de um tempo novo: – A Democracia!

        Entre as fotografias que guardo com carinho, há uma que me toca de forma especial. Foi tirada pouco tempo depois do 25 de Abril e nela reconheço o meu avô e um tio, lado a lado com outros homens que, naquele momento, assumiam uma grande responsabilidade: formar a Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Creixomil, no concelho de Barcelos — a minha terra natal.

        Essa imagem representa muito mais do que um simples registo de época. É o retrato vivo de um tempo de mudança, de esperança e de reconstrução. Logo após a Revolução dos Cravos, quando o país despertava para a liberdade, foram estas pessoas — vizinhos, amigos, trabalhadores, pais e mães — que deram o primeiro passo para reconstruir a vida local, agora em democracia.

        Sem ambições pessoais nem interesses escondidos, uniram-se apenas com a vontade genuína de servir a sua terra e contribuir para um futuro melhor. Num tempo em que tudo estava por fazer, encontraram na liberdade recém-conquistada a força para agir, para decidir, para sonhar coletivamente.

        O presidente de junta é o primeiro rosto do poder democrático junto das populações, aquele que conhece de perto as dificuldades da sua comunidade. É quem escuta os problemas do dia-a-dia, quem encontra soluções com poucos meios, é quem está presente. No entanto, o seu papel é tantas vezes esquecido ou desvalorizado. Ser presidente de junta é servir, é estar disponível, é cuidar da terra e das pessoas — uma missão de proximidade e dedicação que merece o nosso respeito e reconhecimento.

        Hoje, ao aproximarem-se novas eleições autárquicas, sinto que é justo e necessário prestar homenagem a todos os homens e mulheres que, como eles, acreditaram no poder da participação cívica e da solidariedade. Foram pioneiros de uma nova forma de viver a comunidade — onde o servir substituiu o mandar, e o bem comum falou mais alto do que o interesse próprio.

        Que esta fotografia seja também um lembrete para todos nós: a liberdade constrói-se todos os dias, com o mesmo espírito generoso e corajoso daqueles que, em Creixomil e por todo o país, souberam dar o exemplo logo após abril.