30 novembro 2025
27 novembro 2025
Desafio da Memória:
Conseguem adivinhar que ponte é
esta?
Há
fotografias que são muito mais do que imagens. São portas abertas para o
passado. Hoje proponho-vos um desafio especial. Conseguem adivinhar qual é a ponte que está na fotografia?
Dou-vos algumas
pistas…
É uma ponte metálica como tantas outras construídas
no nosso país. Esta situa-se no norte de Portugal. Hoje confunde-se com o nome da sua Vila, mas foi batizada com nome de um príncipe que nunca chegou a ser rei. Foi construída por um engenheiro francês, mas não, não foi o
que deu nome à famosa torre Francesa, embora na época vivesse no nosso país,
numa cidade bem próxima desta ponte.
Para mim,
esta ponte é muito mais do que ferro e parafusos. É memória viva. Passei por ela várias vezes “à pendura” da
mota do meu pai, uma Sachs V5 que, naqueles tempos, era praticamente o
nosso carro de família. Íamos visitar o meu irmão, que tinha acabado de nascer…
no mesmo hospital onde eu tinha nascido
sete anos antes.
Esse
hospital também guarda história. No início do século passado era conhecido como
Hospital-Asilo. Criado há mais
de quatrocentos anos para apoiar os peregrinos dos Caminhos de Santiago e os “enfermos
mais pobres e doentes da região” conforme reza a acta da sua constituição. Fica ali mesmo, a dois passos da ponte.
Aos olhos de
hoje parecem imprudências, mas na altura eram apenas viagens normais, uma criança de sete anos, sentada atrás numa
mota, mãos atadas ao casaco do pai, sem capacete... Demorávamos quase
uma hora a chegar. E, mesmo assim, eu fazia aquela viagem com um sorriso enorme, como se estivesse a
iniciar uma grande aventura.
Quando a
maré estava baixa, formavam-se pequenas
ilhotas no rio, que mais parecia um imenso campo de pasto cheio de vacas
a pastar. Era uma paisagem lindíssima,
daquelas que ficam gravadas na memória para sempre.
E os doces,
será que acertam no verdadeiro nome?
20 novembro 2025
Tio Januário o Alfaiate.
Há pessoas
que, pela força da presença e pelo rasto que deixam na nossa infância, acabam
por se tornar personagens maiores do que a própria vida. Para mim, uma dessas
figuras foi o Januário ou
melhor, o Tio
Januário, como todos nós, crianças, éramos ensinados a chamar
aos mais velhos por respeito, mesmo que não houvesse qualquer laço de sangue.
Ainda assim, durante muito tempo, o seu verdadeiro nome nem sequer importava, para
todos ele era simplesmente o Tio Alfaiate. Naquele tempo, as profissões
colavam-se aos nomes como sobrenomes, apelidos ou alcunhas. Havia o Manel Moleiro, o João
Caiador, o Joaquim Carpinteiro, o Zé do Ferreiro… e havia o Januário, o
Alfaiate.
Ele aparecia
em casa do meu avô mais ou menos de quinze em quinze dias, quase sempre no
mesmo dia em que se cozia o pão. Não acredito que fosse coincidência. Naquele
tempo, nada havia em abundância, e muito menos comida. Mas o Januário sabia
escolher bem os dias de visita!
Chegava
sempre impecável, como mandava a sua arte, montado na bicicleta a pedal com uma
mola presa à perneira da calça para não tocar na corrente. Aquele cuidado era
quase um cartão-de-visita. Debaixo do seu elegante e obrigatório chapéu trazia
o mini-bigode sempre aparado, uma caixa de tabaco que parecia um estojo de ferramentas
e uma boa disposição que não cabia na sala. A destreza com que enrolava o
tabaco era fruto de anos de prática, mas nunca perdia a oportunidade de nos
avisar que aquilo era “coisa de homens”, e que não devíamos experimentar. Nós
ríamos e claro que acreditávamos até pelo cheiro que aquilo largava.
Quando o
Januário entrava pela porta, a casa iluminava-se. A máquina de costura parecia
ganhar vida própria ao toque das suas mãos, como se tocasse música. Ele sabia
remendar tudo. Calças já vencidas pelos anos, camisas gastas, roupas tão calejadas
pelo tempo que só o seu talento parecia capaz de lhes dar mais uma
oportunidade. Era um mestre das agulhas e linhas, daqueles que já não se
fabricam.
Entre ponto
e costura, vinha sempre carregado de histórias mirabolantes que deixavam a
criançada em êxtase. Quando se picava numa agulha, soltava o seu famoso “com seiscentos…”,
expressão herdada, dizia ele, dos tempos em que viveu em Angola. Muito mais
tarde vim a saber que o Januário era mais um dos tantos retornados que
regressaram sem nada, obrigados a recomeçar do zero numa freguesia vizinha.
Talvez por isso valorizasse tanto cada pequeno gesto, cada broa, cada
gargalhada.
E, claro,
nunca saía de mãos vazias. No fim do dia, seguia estrada fora, de sacola de
pano ao ombro, levando consigo uma broa de milho acabadinha de cozer, talvez a
sua jorna. Mas ainda antes disso, tinha direito a uma grande malga de broa com
vinho, a tão popular “sopa de vinho” que devorava com gosto para ganhar força
para a viagem.
Não sei se o
Januário tinha consciência do lugar que ocupava nas nossas memórias. Mas sei que,
para muitos de nós, ele foi mais do que um alfaiate ambulante. Foi personagem,
foi alegria, foi companhia. Um daqueles pequenos grandes fragmentos da infância
que ficam gravados para sempre, costurados a ponto firme no tecido do tempo.
Afinal, que seria
da nossa infância sem estas personagens que costuraram, ponto a ponto, as
memórias que hoje ainda nos aquecem o coração?
11 novembro 2025
“Angola
é Portugal”
Memórias de uma parede
que fala sobre o tempo, a história e o que ficou por compreender.
Há dias
voltei à casa dos meus avós. O cenário de tantas memórias de infância. Aquele
lugar onde o tempo parece ter parado, mas onde cada pedra ainda guarda um eco
da minha infância. Já não mora lá ninguém, mas aquele lugar ainda fala. As
memórias continuam vivas, espalhadas pelos cantos, misturadas no cheiro a
madeira antiga e no silêncio das paredes.
Foi num
desses cantos, num velho coberto, que reencontrei uma inscrição que sempre me
intrigou e despertou a curiosidade. “ANGOLA É PORTUGAL”
Letras brancas, toscas, desenhadas sobre a pedra, como se quisessem resistir ao
esquecimento.
Lembro-me de
a ver quando era criança, sem compreender o seu peso. Hoje, precisamente no dia em que se comemoram os
50 anos da independência de Angola, aquela frase regressou à minha memória. Agora com
outro significado, mais denso, mais humano. Soube, com o tempo, que foi escrita
pelos meus tios, ainda miúdos, provavelmente no início dos anos 60. Quando ainda
frequentavam a escola, quando o mapa de Portugal ainda incluía as antigas colónias.
Era o reflexo de uma educação moldada pela propaganda, de um país fechado sobre
si mesmo, onde se confundia identidade com domínio. Era essa lição que se
aprendia nas salas de aula, cuidadosamente controladas pelo regime do Estado
Novo. Um tempo que felizmente não me calejou pois tive a sorte de nascer em Liberdade.
Talvez, para
muitos jovens daquela geração, essa frase fosse uma justificação inconsciente
para embarcar numa guerra que não compreendiam. Uma guerra que lhes foi
imposta, fruto de um tempo em que as palavras “pátria” e “obediência” tinham um
preço alto demais. Muitos regressaram marcados, outros por lá ficaram para
sempre. Na verdade combatia-se para defender uma ideia, uma ficção construída por
um regime que temia o fim do império.
Hoje leio
essa inscrição de outra forma. Não como um grito de posse, mas como o testemunho de uma época em que as
fronteiras se traçavam à força e as consciências eram moldadas pelo medo.
E, paradoxalmente, vejo nela também a lembrança de uma ligação profunda. Uma
ligação cultural e humana entre povos que o tempo separou politicamente, mas
que continuam entrelaçados na memória e na língua. Cinquenta anos depois da
independência, a frase ganha outro significado.
Não como uma afirmação de domínio, mas como um convite à reflexão sobre tudo o
que nos une. A língua, a cultura, a memória, o sofrimento partilhado e as cicatrizes
que ainda persistem.
A parede
continua lá, firme, como quem guarda segredos antigos. Como um fragmento da
nossa história coletiva. E aquela frase, escrita à pressa e sem grande cuidado,
acabou por se tornar um fragmento de história. Não só da minha família, mas
também de um país que aprendeu e continua a aprender, com dor, o valor da
liberdade e da verdade.
06 novembro 2025
Quinta-feira é dia de Feira.
Hoje é
quinta-feira, e aqui em Barcelos isso tem um significado muito especial. É dia
de Feira. A
história da feira de Barcelos remonta
ao século XV, quando foi autorizada pelo Rei D. João I em 1412 para ser um
evento anual. A feira foi evoluindo ao longo dos séculos, mudando de
duração, local e dia de realização, até se fixar no Campo da República (antigo
Campo da Feira) e passar a ser realizada semanalmente às quintas-feiras. Por isso aqui na minha terra, desde sempre, a quinta-feira é dia de
Feira. É quase uma lei não escrita, enraizada na alma das gentes daqui. Se o
domingo é para ir à missa, a quinta-feira é para ir à Feira.
A feira é um
mundo à parte. Cada banca conta uma história. Das louças coloridas às mantas de
lã, de todo o tipo de vestuário, frutas e legumes, animais vivos, dos cestos de
vime aos galos de Barcelos, há um encanto que nos transporta a outros tempos. Caminhar
por entre todas aquelas bancas e tendas cheias de vida é quase como percorrer as
páginas de um livro antigo. Um livro escrito com tradição, trabalho e alegria.
Há lugares
que ficam gravados em nós não só pelo que vemos, mas pelo que sentimos e a
Feira de Barcelos é, para mim, um desses sítios. Lembro-me bem das histórias
que a minha mãe e as minhas tias contavam, dos tempos em que ainda iam a pé,
com os cestos à cabeça, equilibrados com aquela elegância natural de quem
cresceu habituada ao esforço. Outras vezes, iam com o meu avô, no carro de
bois, que rangia devagar pelas estradas de terra batida. Era uma viagem longa,
mas cheia de esperança. Esperança de vender o que a terra dava e de trazer
algum dinheiro para casa.
Mais tarde,
com as estradas melhoradas, começou a vir a “camioneta” à aldeia. Era uma
festa! A feira deixava de ser apenas um lugar de comércio, era o ponto de
encontro, o dia diferente da semana, o momento em que se viam caras conhecidas
e se trocavam novidades. Tudo o que a terra produzia tinha valor. Levavam-se
sacos de batatas, feijão, cebolas, flores e, claro, as laranjas, que sempre
foram o orgulho da nossa aldeia, conhecida pela boa laranja, doce e perfumada.
Os pares de frangos eram escolhidos “a dedo”. Os mais bonitos, de crista
vermelha eram os selecionados para chamar a atenção dos compradores.
Recordo-me
de andar de mão dada com a minha mãe, maravilhado com a confusão organizada da
feira. Andar de banca em banca, de tenda em tenda à procura das botas ou das
calças que eu precisava, mas sempre regateando o preço que ela podia pagar. As
galinhas cacarejavam num canto, o vendedor de castanhas apregoava em voz alta,
e havia sempre alguém disposto a negociar o preço de um par de sapatos ou de
uma faca artesanal. Era um espetáculo vivo, cheio de sons, cores e cheiros que
se entranhavam na memória. E no meio desse rebuliço todo, havia sempre espaço
para os pequenos prazeres. Quando a feira corria bem, lá vinha o mimo, os
“pastéis”, ou o pão doce simples que sabiam à recompensa e ao carinho de quem
queria ver os filhos felizes.
Naqueles
tempos, até a forma de se despedirem mostrava a importância da feira nas nossas
vidas. Em vez de um simples “até para a semana”, dizia-se “até à feira”. Era a
medida do tempo das gentes do campo. O calendário não se fazia pelos dias, mas
pelas feiras. Entre uma e outra passava-se a vida, com o trabalho da terra, as
colheitas, as lidas do dia-a-dia, sempre com a próxima quinta-feira no
pensamento.
A Feira de Barcelos não é só comércio. É memória viva, é tradição, é o coração do Minho a bater forte todas as quintas-feiras. Ainda agora, quando oiço o burburinho das bancas e sinto o cheiro das castanhas no ar, parece que o tempo volta atrás. Hoje já não há carro de bois nem cestos à cabeça, mas o encanto é o mesmo. A feira continua lá, fiel à sua quinta-feira, como sempre. E eu continuo a sentir o mesmo orgulho e a mesma ternura, porque a Feira de Barcelos é, e será sempre, parte da minha história.
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