11 novembro 2025


“Angola é Portugal”

Memórias de uma parede que fala sobre o tempo, a história e o que ficou por compreender.


            Há dias voltei à casa dos meus avós. O cenário de tantas memórias de infância. Aquele lugar onde o tempo parece ter parado, mas onde cada pedra ainda guarda um eco da minha infância. Já não mora lá ninguém, mas aquele lugar ainda fala. As memórias continuam vivas, espalhadas pelos cantos, misturadas no cheiro a madeira antiga e no silêncio das paredes.

            Foi num desses cantos, num velho coberto, que reencontrei uma inscrição que sempre me intrigou e despertou a curiosidade. “ANGOLA É PORTUGAL
Letras brancas, toscas, desenhadas sobre a pedra, como se quisessem resistir ao esquecimento.

            Lembro-me de a ver quando era criança, sem compreender o seu peso. Hoje, precisamente no dia em que se comemoram os 50 anos da independência de Angola, aquela frase regressou à minha memória. Agora com outro significado, mais denso, mais humano. Soube, com o tempo, que foi escrita pelos meus tios, ainda miúdos, provavelmente no início dos anos 60. Quando ainda frequentavam a escola, quando o mapa de Portugal ainda incluía as antigas colónias. Era o reflexo de uma educação moldada pela propaganda, de um país fechado sobre si mesmo, onde se confundia identidade com domínio. Era essa lição que se aprendia nas salas de aula, cuidadosamente controladas pelo regime do Estado Novo. Um tempo que felizmente não me calejou pois tive a sorte de nascer em Liberdade.

            Talvez, para muitos jovens daquela geração, essa frase fosse uma justificação inconsciente para embarcar numa guerra que não compreendiam. Uma guerra que lhes foi imposta, fruto de um tempo em que as palavras “pátria” e “obediência” tinham um preço alto demais. Muitos regressaram marcados, outros por lá ficaram para sempre. Na verdade combatia-se para defender uma ideia, uma ficção construída por um regime que temia o fim do império.

            Hoje leio essa inscrição de outra forma. Não como um grito de posse, mas como o testemunho de uma época em que as fronteiras se traçavam à força e as consciências eram moldadas pelo medo.
E, paradoxalmente, vejo nela também a lembrança de uma ligação profunda. Uma ligação cultural e humana entre povos que o tempo separou politicamente, mas que continuam entrelaçados na memória e na língua. Cinquenta anos depois da independência, a frase ganha outro significado.
Não como uma afirmação de domínio, mas como um convite à reflexão sobre tudo o que nos une. A língua, a cultura, a memória, o sofrimento partilhado e as cicatrizes que ainda persistem.

            A parede continua lá, firme, como quem guarda segredos antigos. Como um fragmento da nossa história coletiva. E aquela frase, escrita à pressa e sem grande cuidado, acabou por se tornar um fragmento de história. Não só da minha família, mas também de um país que aprendeu e continua a aprender, com dor, o valor da liberdade e da verdade.


 

21 comentários:

  1. Pobres países africanos de expressão portuguesa!
    Se antes estavam mal, depois de se libertarem do jugo, continuaram amarrados a outros tiranos.
    É bom, e bonito, encher o peito de orgulho e gritar "Liberdade", porém, de que adianta um país ser Livre se, sendo rico e autónomo, mantém o povo na miséria e refém de outras tiranias??
    Fogo de artifício, alegra os gentios e fá-los cantar, mas não lhes mata a fome...
    Um abraço, caro Rui.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Realmente é triste ver no estado em que ainda se encontra um pais que festeja os cinquenta anos de independência. Têm tudo e ainda lhes falta tanta coisa...
      Lá ainda não chegou a verdadeira Democracia.
      Um abraço Janita.

      Eliminar
  2. Correia,

    que texto poderoso.
    Há nele uma delicadeza rara ao tratar de algo tão denso a herança colonial, a memória, o tempo sem perder o fio humano que o sustenta. A parede, com sua inscrição tosca e teimosa, torna-se símbolo de um passado que ainda respira, e é comovente perceber como consegues transformar essa lembrança pessoal em reflexão coletiva.

    A frase “Angola é Portugal”, que antes soava como imposição, ganha nas tuas palavras uma nova camada de sentido a da ligação humana que sobrevive ao império. O texto convida à escuta da história sem ódio, mas também sem ingenuidade, reconhecendo que a liberdade é um aprendizado contínuo.

    Há um respeito silencioso na tua escrita o mesmo respeito que se tem diante de uma casa antiga, de um barulho que vem do fundo do tempo. É uma crônica que une memória, consciência e poesia.
    Muito boa 👍

    Abraço
    Fernanda

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Fernanda.
      Muito obrigado pelas suas palavras.
      Sei que este é um tema com muitas sombras. Tentei colocar algumas luz para que não fosse tão cinzento como muitos o pintam.
      Um abraço.

      Eliminar
  3. Interessante afirmação. A ideia de uma “parede que fala” sugere memória colectiva, rastros do tempo, marcas da história e lacunas de compreensão que ainda nos instigam. Pode falar de como os espaços físicos guardam memórias, como paredes de casas, escolas ou centros históricos testemunham mudanças sociais, momentos de silêncio e ruídos do passado. Também convida a refletir sobre o que ainda não entendemos ou não queremos ver, convidando à leitura entre as frestas do tempo e da arquitetura.
    Em resumo: a parede funciona como documento vivo, capaz de provocar memória, curiosidade e consciência histórica.

    Abraço da aldeia do Düssel — a capital de NRW.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. As memorias estão nos mais pequenos detalhes.
      Tantas coisas que "falam" à nossa volta, só precisamos de parar para as escutar.
      Um abraço e bom fim de semana.

      Eliminar
  4. I love how you explore both the pain of colonialism and the enduring threads of shared culture and language. Reading it, you feel the quiet power of walls and words to preserve lessons that time cannot erase.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Thank you very much for your visit and your comment. I hope you will visit again soon.

      Eliminar
  5. Cinquenta anos depois somos irmãos na Lusofonia.
    Abraço, bfds

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E a Lusofonia está nos quatro cantos do mundo.
      Um abraço e bom fim de semana.

      Eliminar
  6. Sem dúvida que a frase testemunha uma época e também uma realidade de um contexto histórico.
    Bom fim de semana.
    Abraço de amizade.
    Juvenal Nunes

    ResponderEliminar
  7. I don't like the phrase "Angola is Portugal" at all. It smacks of colonialism, the death of Africans under Portuguese rule.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. You need to know the context of this image to understand what I'm talking about.

      Eliminar
  8. Uma frase numa velha parede que relembra um período bem triste da nossa história.
    Abraços e um excelente Domingo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Felizmente não tenho memória desses tempos mas percebo ao falar com o meu pai que foi algo muito difícil de superar. Nem o tempo, curador de muitas maleitas, consegue aliviar o que passaram.
      Um abraço e boa semana.

      Eliminar
  9. "Hoje leio essa inscrição de outra forma. Não como um grito de posse, mas como o testemunho de uma época em que as fronteiras se traçavam à força e as consciências eram moldadas pelo medo."
    Um texto escrito com a lucidez de quem sabe pensar. Foram 500 anos da nossa história. Marcaram muita gente.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Temos sempre que perceber o contexto em que os acontecimentos se desenrolaram e não os ler com o conhecimento que hoje temos.
      Um abraço e boa semana.

      Eliminar