A Matança do Porco
Na minha
família, havia uma tradição que marcava o compasso do tempo e o ritmo da vida
no campo: a matança do porco, ou num termo mais peculiar - a Matança do Xico.
Realizava-se uma vez por ano nos meses de inverno. Como um ritual trazido de
outras gerações obrigava a certas regras. Era realizado sempre numa sexta-feira
antes do nascer do sol, como se a madrugada fosse testemunha e guardiã desse
ritual antigo.
Os homens da casa reuniam-se para o tradicional mata-bicho
ainda na penumbra da madrugada, aqueciam o corpo preparando o espírito para a
tarefa que se avizinhava. Era o início do dia que todos sabiam que seria longo,
exigente e, ao mesmo tempo, memorável.
Os mais
velhos assumiam a tarefa com seriedade e saber. Cada um tinha o seu papel: quem
executava (o “matador”), quem segurava o animal no cimo do carro de bois, quem aparava
o sangue no alguidar. De seguida era chamuscado com palha acesa, esfolado e no
final lavado com a ajuda de pedras e o tradicional “pau de sabão rosa”. Tudo
era feito com respeito e com um sentido prático que, na altura, parecia natural
e incontornável. Nós, as
crianças, ficávamos quase sempre à margem, vendo tudo de longe. Primeiro,
observávamos com olhos curiosos o trabalho dos adultos, e depois imitávamos os
seus gestos nas nossas brincadeiras, como se quiséssemos, também nós, guardar
na memória a sabedoria desse ritual.
Quando o
trabalho terminava, o porco ficava pendurado numa trave na adega onde
repousavam os pipos de vinho, sempre mergulhada na penumbra. Ninguém lá podia
entrar nesse dia. Lá permanecia até ao sábado de manhã, quando finalmente era
retirado para se desfazer peça a peça, cada gesto carregado de precisão e
experiência, pelas
mãos experientes que conheciam cada corte como se fosse uma arte.
A carne era
então mergulhada numa mistura de sal grosso com vinho tinto, ganhava sabor e
preservação, antes de ser cuidadosamente colocada na salgadeira. Esse processo,
quase cerimonial, era acompanhado de olhares atentos e de um silêncio
respeitoso, como se todos soubessem que estavam a cumprir um legado.
O domingo
era o dia maior, o verdadeiro ponto alto da tradição: o dia do sarrabulho. O
meu avô reunia toda a família em volta da mesa, e o repasto seguia uma ordem
quase sagrada. Primeiro, as papas de sarrabulho, intensas e fumegantes, que
aqueciam o corpo e a alma. Depois, o cozido, generoso e farto, seguido pelos
rojões e pelas tripas, que traziam à mesa a essência do trabalho dos dias anteriores, o sabor forte da terra e do tempo.
E, para finalizar, o doce que todos esperavam: o pão-de-ló, macio e dourado,
como um fecho perfeito para a festa sempre aguardado com impaciência pelos mais
novos.
Hoje,
lembro-me da matança do porco não apenas como um costume alimentar, mas como um
elo de união familiar. Um tempo em que trabalho, alimento e convívio se
entrelaçavam.
Havia ali uma partilha invisível, transmitida no silêncio dos gestos, no calor
da cozinha, no convívio à mesa. Havia um tempo em que o trabalho e a festa
andavam de mãos dadas, em que o alimento era também laço, raiz e pertença. Era, sobretudo, memória viva — um
laço invisível que ainda me liga às vozes, aos cheiros e aos sabores da minha
infância.

Olá, Rui!
ResponderEliminarEssa tradição da matança do porco é memória de infância que não 'me assiste'. No meu Alentejo, apesar da abundância do porco preto, sobretudo nas serras, era o borrego, o animal que se abatia na Páscoa. Na minha família, pelo menos era assim. Porém, nunca assisti a tal ritual. O meu avô lá se encarregava disso, no Monte, e trazia as peças que repartia pelos cinco filhos, dos sete que minha avó pariu.
Infelizmente, não conheci duas tias nem tampouco a minha avó. Faleceu quando a minha mãe tinha apenas 13 anos de idade.
Como sempre, uma descrição minuciosa e muito bem elaborada de mais uma das suas memórias. Gostei deveras.
Penso que essa imagem, a ser uma foto de família, deve remontar ao tempo dos seus bisavós. Digo isto pelos trajes. :)
Deixo um abraço com votos de uma excelente semana.
Olá Janita!
EliminarEsta foto não da minha família, foi tirada aqui no Minho e data do inicio do seculo XX.
Na minha aldeia ainda hoje vemos esta tradição onde os meus pais são seguidores. Cada terra seu uso...
Boa semana.
A criação do porco e a engorda do mesmo tinha apenas um objetivo em tempos remotos que seria para sustentar a família. Mais tarde tornar-se-ia uma tradição que foi mantida mas com certas restrições, estou a supor.
ResponderEliminarSó me recordo de uma vez ter passado alguns dias na casa dos avós maternos durante esse tal “evento”. Era muito pequena e não assisti ao ato naturalmente. Sei apenas que havia muita gente envolvida. O meu avô contratava homens para o abate do pobre bicho, que tinha estado “na engorda” durante tempos e mulheres para lavarem e fazerem as chouriças/linguiças. Também eram elas que depois preparavam os petiscos para todos comerem, incluindo “o senhor e as senhoras” da casa. E eu, a menina.
Houvia falar que alguns portugueses, que possuiam quintas (no Canadá), mantinham essa tradição, mas não sei em que circunstâncias e que normas tinham de seguir.
Repito o que já disse, as suas publicações fazem-me também recordar sobre coisas/eventos/situações que há décadas e décadas estavam no esquecimento. : )
Obrigada pelas palavras gentis!
EliminarSei que ainda hoje em França em localidades com muitos Portugueses essa tradição ainda se pratica, embora seja mais pela partilha e pelo ato festivo.
Abraço e boa semana.
Aquele “h” no ouvia está a mais naturalmente.
ResponderEliminarEu que nem uma mosca 🪰 mato, tive dificuldade de ler esta descrição sobre uma tradição familiar que nunca ocorreu na minha família.
ResponderEliminarAbraço amigo da aldeia do Düssel.
Tentei não ser muito minucioso nos detalhes para não ferir suscetibilidades!
ResponderEliminarPor muito duvidoso que possa parecer esta tradição também tinha em conta o animal, sempre tratado com respeito
Abraço.
Na minha família também sempre houve a tradição da matança do Porco. É uma tradição que gosto, sinceramente.
ResponderEliminarFiquei seguidor
Cumprimentos poéticos.
Obrigado e bem vindo!
EliminarAbraço
Estou muito curiosa sobre o próximo tema. Caça? Pratos tradicionais? Olaria? : ))
ResponderEliminarFrio, frio e frio...:)
EliminarOlá, Barcelos, vim para conhecer seu Blog e para ler as suas memórias.
ResponderEliminarGostei muito porque você descreveu sobre essa festa familiar, na qual você participou ainda criança.
Aqui no interior de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, os portugueses deixaram essa mesma cultura.
Um bom fim de semana,
Um abraço daqui de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
Olá Porto Alegre. Muito obrigado pela visita.
EliminarBom fim de semana.
No conocía tu blog, la verdad agradezco haberla conocido. Muchas gracias por tu relato y palabras, ya veo que no soy la única que espera mas posts como este :) un saludo y abrazos.
ResponderEliminarBlog de Bea- recomendaciones, animes, juegos & más!.
Olá Beatriz: Muito obrigado pela sua visita. Grato pelas suas palavras.
ResponderEliminarAbraço e volte mais vezes.
Uma crónica muito interessante... Lembro-me da minha Mãe falar sobre a matança do porco e de muitas outras histórias... Somos da zona de Vila Real, de Chaves.
ResponderEliminarBeijos e abraços
Marta
Obrigado pelas palavras.
EliminarO Minho e Trás os Montes têm tradições muito similares no seu meio rural.
Abraço
Adoro leituras que
ResponderEliminarresgatam historias
e vivências.
Bjins&Abraço de
ótimo fim de semana.
CatiahôAlc.
Obrigado pela visita. as memorias fazem-nos sentir vivos!
EliminarAbraço.
Perdi-me neste blogue maravilhoso a reviver a minha infância!
ResponderEliminarUm beijo
Espero poder "encontra-la" por cá mais vezes.
EliminarObrigado.
Na minha casa também havia essa tradição.
ResponderEliminarEu, no dia em que se faziam as chouriças, era especialista em roubar umas febras, espetá-las num arame e pô-las por cima das brasas da lareira. Eram uma delícia...
Um crónica magnífica, gostei de ler e de recordar belos tempos.
Boa semana.
Um abraço.
Belos tempos Jaime Portela. Sabores deliciosos.
EliminarBoa semana.
Abraço.
O meu avó também criava porcos que depois matava para alimentar a família. Como os meus pais viviam em Lisboa nunca estivemos presentes. Eu adorava ir à sua enorme dispensa e ver os chouriços e presuntos pendurados num varão, havia sempre um chouriço pequenino para cada neto, eram uma delicia.
ResponderEliminarBoas memórias.
Abraços
Engraçado que também acontecia o mesmo em casa dos meus avós. Havia sempre um chouriço pequenino para os mais pequenitos.
EliminarAbraços.
Obrigado por partilhar. Este tipo de memórias são já um legado de costumes.
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