29 setembro 2025


A Matança do Porco

        Na minha família, havia uma tradição que marcava o compasso do tempo e o ritmo da vida no campo: a matança do porco, ou num termo mais peculiar - a Matança do Xico. Realizava-se uma vez por ano nos meses de inverno. Como um ritual trazido de outras gerações obrigava a certas regras. Era realizado sempre numa sexta-feira antes do nascer do sol, como se a madrugada fosse testemunha e guardiã desse ritual antigo. Os homens da casa reuniam-se para o tradicional mata-bicho ainda na penumbra da madrugada, aqueciam o corpo preparando o espírito para a tarefa que se avizinhava. Era o início do dia que todos sabiam que seria longo, exigente e, ao mesmo tempo, memorável.

        Os mais velhos assumiam a tarefa com seriedade e saber. Cada um tinha o seu papel: quem executava (o “matador”), quem segurava o animal no cimo do carro de bois, quem aparava o sangue no alguidar. De seguida era chamuscado com palha acesa, esfolado e no final lavado com a ajuda de pedras e o tradicional “pau de sabão rosa”. Tudo era feito com respeito e com um sentido prático que, na altura, parecia natural e incontornável. Nós, as crianças, ficávamos quase sempre à margem, vendo tudo de longe. Primeiro, observávamos com olhos curiosos o trabalho dos adultos, e depois imitávamos os seus gestos nas nossas brincadeiras, como se quiséssemos, também nós, guardar na memória a sabedoria desse ritual.

        Quando o trabalho terminava, o porco ficava pendurado numa trave na adega onde repousavam os pipos de vinho, sempre mergulhada na penumbra. Ninguém lá podia entrar nesse dia. Lá permanecia até ao sábado de manhã, quando finalmente era retirado para se desfazer peça a peça, cada gesto carregado de precisão e experiência, pelas mãos experientes que conheciam cada corte como se fosse uma arte.

        A carne era então mergulhada numa mistura de sal grosso com vinho tinto, ganhava sabor e preservação, antes de ser cuidadosamente colocada na salgadeira. Esse processo, quase cerimonial, era acompanhado de olhares atentos e de um silêncio respeitoso, como se todos soubessem que estavam a cumprir um legado.

        O domingo era o dia maior, o verdadeiro ponto alto da tradição: o dia do sarrabulho. O meu avô reunia toda a família em volta da mesa, e o repasto seguia uma ordem quase sagrada. Primeiro, as papas de sarrabulho, intensas e fumegantes, que aqueciam o corpo e a alma. Depois, o cozido, generoso e farto, seguido pelos rojões e pelas tripas, que traziam à mesa a essência do trabalho dos dias anteriores, o sabor forte da terra e do tempo. E, para finalizar, o doce que todos esperavam: o pão-de-ló, macio e dourado, como um fecho perfeito para a festa sempre aguardado com impaciência pelos mais novos.

        Hoje, lembro-me da matança do porco não apenas como um costume alimentar, mas como um elo de união familiar. Um tempo em que trabalho, alimento e convívio se entrelaçavam. Havia ali uma partilha invisível, transmitida no silêncio dos gestos, no calor da cozinha, no convívio à mesa. Havia um tempo em que o trabalho e a festa andavam de mãos dadas, em que o alimento era também laço, raiz e pertença. Era, sobretudo, memória viva — um laço invisível que ainda me liga às vozes, aos cheiros e aos sabores da minha infância.


 

22 setembro 2025


O candeeiro da sala.

            As minhas recordações de infância estão repletas de aventuras simples, mas cheias de magia. Cresci rodeado pelos meus primos e a casa dos meus avós era o nosso Forte. Juntos transformávamos qualquer recanto num verdadeiro parque de diversões. Não havia brinquedos modernos, mas havia imaginação — e isso bastava.

            O meu avô, carpinteiro de mãos hábeis e coração generoso, deixava-nos explorar as suas ferramentas. Com pedaços de madeira, dávamos vida a barcos que depois navegavam no tanque usado para regar os campos e lavar as roupas. Com as sacholas, fazíamos ondas, transformando aquele tanque num oceano em miniatura. Claro que as minhas tias não achavam tanta graça, afinal os cabos das sacholas ficavam todos farpados e, no dia seguinte, eram elas que precisavam das ferramentas para trabalhar.

            Entre as maravilhas que o meu avô construiu para mim, houve uma que nunca esqueci: uma roda em madeira com guiador que apoiava ao ombro e que, na minha imaginação, era uma moto. Corria pela casa com a novidade, o soalho de madeira amplificava o barulho das minhas "acelerações", e acho que, instantes depois de dar início às minhas corridas já o meu avô se tinha arrependido da sua generosidade. J

            Mas a memória mais divertida que guardo aconteceu pouco tempo depois da chegada da luz pública às ruas da aldeia. Eu e um primo, companheiro inseparável das minhas traquinices, tínhamos acabado de aprender com o meu avô a fazer uma fisga. Era a nossa nova arma secreta e tínhamos que a testar.

            Na altura, instalaram dois postes de iluminação junto à casa do meu avô. Achámos prudente não disparar contra o que ficava próximo da nossa entrada, e elegemos o outro, mais afastado, no caminho que levava à casa do vizinho. Á vez, os dois recrutas com a sua nova arma, tentavam acertar no alvo. Depois de algumas tentativas falhadas, lá conseguimos acertar (por uma questão de justiça acho que até foi o meu primo o autor da fisgada certeira… e a partir a lâmpada)!

            Fugimos apavorados, mas também bastante orgulhosos da pontaria. O verdadeiro problema veio mais tarde: o vizinho, que ao longe tinha observado toda esta cena, foi logo fazer queixa ao meu tio. Acusou-nos de lhe termos partido o candeeiro da sala. O meu tio, ao ouvir tão grave acusação, não quis perder tempo. Homem de temperamento rápido e com grande sentido de justiça, decidiu de imediato repor a ordem: pena aplicada - uma valente sova. Na verdade o vizinho ainda não tinha luz elétrica em casa e continuava a viver à luz das velas. Mas como o poste ficava mesmo em frente às janelas da sua casa, iluminava-a todas as noites, e para ele aquela maravilhosa lâmpada era o seu precioso “candeeiro da sala”.

            Foi preciso muito esforço da nossa parte para explicar ao meu tio o que realmente tinha acontecido. ”Apenas” tínhamos partido a lâmpada do poste da rua… Só depois de muita conversa conseguimos evitar a sova que parecia certa. A pena foi reduzida para um “puxão de orelha”, uma reprimenda e uma lição: nunca mais testar a pontaria em candeeiros… pelo menos não tão perto de casa!

            Ainda hoje me rio quando recordo esse episódio. São histórias como esta que mostram como a infância, mesmo sem grandes recursos, pode e deve ser um tempo de liberdade, criatividade e descobertas — momentos que ficam gravados na memória para sempre.

 

15 setembro 2025


Memórias à mesa: - A broa da "Tia Quinhas"

        Se há memória que me acompanha desde criança é o aroma da broa de milho da “Tia Quinhas”. Mais do que alimento, era um ritual, um pedaço de tradição que unia toda a família em torno da sua mesa e da sua generosidade. Houve sempre uma presença discreta mas imensa na minha infância e na vida de toda a família: a tia Quinhas. Era a mais velha de dez irmãos, mas nunca quis casar. Em vez disso, dedicou-se inteiramente aos meus avós, sendo para nós, sobrinhos, como uma segunda avó. Curiosamente, nunca soube a origem da sua alcunha. Chamava-se Maria — como quase todas as mulheres da sua geração — e, ainda assim, ficou para sempre conhecida por todos como “Quinhas”. Talvez tenha sido um capricho da infância, talvez apenas um modo carinhoso de a distinguir entre tantas Marias. O certo é que ninguém mais a tratava pelo nome de batismo.

         Os primeiros anos da minha infância foram passados na casa dos meus avós, onde a minha tia também vivia. Talvez por isso entre nós existisse um carinho especial, uma ligação feita de proximidade e de gestos simples que marcaram para sempre a minha vida.

        Às quintas-feiras, dia de feira em Barcelos, lá ia ela vender os produtos da terra e quando voltava trazia sempre um mimo para os mais novos: um “pastel”, como nós chamávamos aos bolos, que nos sabia a festa. Mas, por mais deliciosos que fossem, nada se comparava ao sabor da broa, ao aroma da broa quente que ficou gravado em mim como o perfume da infância.

        O fabrico da broa era um acontecimento. Tive a sorte de aprender com ela todo o processo, cheio de rituais quase sagrados: amassar a farinha na “masseira” antiga no dia anterior, benzer a massa antes de a deixar levedar, aquecer o forno que ficava na própria cozinha e, no momento de o tapar, havia uma regra inquebrável — as portas e janelas da casa não podiam ser abertas até ao momento de o destapar. Tudo se fazia com respeito, quase como se a broa fosse uma bênção que exigia silêncio e devoção. Um ritual que se repetia de quinze em quinze dias, o cheiro quente e reconfortante da broa enchia a casa e, como era hábito da tia, repartia-se por toda a família. Cada broa era uma partilha de amor e cuidado, e ninguém ficava de fora. Era mais do que pão, era partilha, era afeto transformado em alimento.

A tia Quinhas deixou-nos muito mais do que lembranças. Deixou-nos o sabor do pão partilhado, a lição de que as coisas mais simples podem ser as mais importantes, e a certeza de que o amor se sente também no cheiro que nos acolhe em casa. Com a sua simplicidade ensinou-nos que o amor não precisa de grandes discursos. Vive-se nos gestos simples, na paciência do cuidado, no prazer de dar sem esperar nada em troca. Para mim, será sempre a memória doce de um lar dentro do lar, de um coração que soube ser mãe, irmã, filha, tia e avó… tudo ao mesmo tempo.


 

07 setembro 2025


 

A eternidade das férias de outros tempos.

        Hoje chegam ao fim as minhas férias. É curioso como ficamos sempre com a sensação de que não fizemos quase nada daquilo que planeámos. Os dias desaparecem a correr e, quando damos por isso, já é hora de voltar à rotina.

        Este pensamento transporta-me para os meus tempos de infância, quando os verões eram longos, quase intermináveis. Três meses de férias davam para tudo: ajudar os pais e os tios na agricultura, perder-me em brincadeiras com os meus primos e até ter tempo simplesmente para não fazer nada.

        Mesmo com as tarefas que os meus pais me davam para fazer, ainda sobrava tempo para me envolver em mil aventuras com os meus amigos — fosse a explorar caminhos, inventar brincadeiras ou simplesmente deixar a imaginação correr solta. Havia até dias que no final da tarde se juntavam todos para jogar à bola na estrada, crianças e adultos sem pressas e sem carros (quase não existiam) a atrapalhar.

        Mas uma das memórias mais marcantes dessa altura eram os dias passados com os meus primos na praia da Apúlia, onde os meus tios, por motivos de saúde, alugavam sempre uma casa. Lá víamos os sargaceiros sempre muito atarefados na sua faina. Logo de manhã cedo íamos ver os barcos dos pescadores a chegar para comprar peixe fresco e, pelas ruas, espalhava-se o cheirinho do pão quente que saía das várias padarias. Dias mágicos, maravilhosos. Na praia acabávamos sempre por fazer novas amizades de outras paragens, que nos anos seguintes acabávamos por reencontrar. Hoje sinto que fui um verdadeiro sortudo e estou profundamente agradecido por me terem proporcionado esse privilégio.

        O tempo mudou, nós mudámos, mas ficam na memória essas lembranças que continuam a ser um refúgio, um lugar onde o relógio nunca corre depressa demais. Fica a imagem de como a vida já foi mais simples, mais descomplicada e de como o tempo parecia não ter pressa de passar.

01 setembro 2025


       A Casa na Arvore - Sonho partilhado! 


         Quando penso na minha infância, uma das lembranças mais vívidas que me vem à memoria é a sensação de aventura que brotava sempre que via um episodio das aventuras de Tom Sawyer. Juntamente com o meu primo Nuno assistia de forma quase religiosa aqueles momentos mágicos, ainda a preto e branco, que a RTP2 nos proporcionava todos os sábados de manhã. Aquele universo de liberdade, amizade e pequenas travessuras inflamava a imaginação. Eu e o meu primo não precisávamos de muito: bastava um pedaço de corda, algumas tábuas velhas e a convicção de que podíamos recriar as aventuras de Tom e Huck no nosso próprio quintal.

        Uma cena em particular ficou gravada em mim: a construção da casa na árvore para o Huck. Inspirados, decidimos fazer o mesmo. O problema é que a vontade era imensamente maior que a habilidade, e a realidade raramente acompanhava a nossa ousadia infantil. As nossas tentativas foram muitas, quase sempre terminando em desastres engraçados ou em resultados que hoje chamaríamos de “quase trágicos”. Mas, para nós, cada falha era apenas mais um capítulo da aventura.

        Só anos mais tarde, já adulto e com filhos, consegui finalmente realizar aquele sonho de criança. Construí para eles a tal casa na árvore que tanto desejei. — confesso que, no fundo, essa construção foi mais importante para mim do que para eles. Enquanto durou, foi um sucesso absoluto: um pequeno refúgio suspenso no tempo, cheio de risos, segredos e cumplicidade.

        Neste verão, durante as férias, percebi que não estava sozinho nesse sonho. Em diferentes locais, deparei-me com casas na árvore erguidas com a mesma paixão e o mesmo espírito aventureiro. Umas mais simples, outras verdadeiras obras de arte. Foi como se todas elas, espalhadas por aí, fossem testemunhos de uma infância partilhada, em que a imaginação nos fazia acreditar que bastava subir alguns ramos para alcançar a liberdade. E vocês também tiveram a vossa “casa na arvore”, ou ainda sonham com ela?