20 novembro 2025


 

Tio Januário o Alfaiate.

            Há pessoas que, pela força da presença e pelo rasto que deixam na nossa infância, acabam por se tornar personagens maiores do que a própria vida. Para mim, uma dessas figuras foi o Januário ou melhor, o Tio Januário, como todos nós, crianças, éramos ensinados a chamar aos mais velhos por respeito, mesmo que não houvesse qualquer laço de sangue. Ainda assim, durante muito tempo, o seu verdadeiro nome nem sequer importava, para todos ele era simplesmente o Tio Alfaiate. Naquele tempo, as profissões colavam-se aos nomes como sobrenomes, apelidos ou alcunhas. Havia o Manel Moleiro, o João Caiador, o Joaquim Carpinteiro, o Zé do Ferreiro… e havia o Januário, o Alfaiate.

            Ele aparecia em casa do meu avô mais ou menos de quinze em quinze dias, quase sempre no mesmo dia em que se cozia o pão. Não acredito que fosse coincidência. Naquele tempo, nada havia em abundância, e muito menos comida. Mas o Januário sabia escolher bem os dias de visita!

            Chegava sempre impecável, como mandava a sua arte, montado na bicicleta a pedal com uma mola presa à perneira da calça para não tocar na corrente. Aquele cuidado era quase um cartão-de-visita. Debaixo do seu elegante e obrigatório chapéu trazia o mini-bigode sempre aparado, uma caixa de tabaco que parecia um estojo de ferramentas e uma boa disposição que não cabia na sala. A destreza com que enrolava o tabaco era fruto de anos de prática, mas nunca perdia a oportunidade de nos avisar que aquilo era “coisa de homens”, e que não devíamos experimentar. Nós ríamos e claro que acreditávamos até pelo cheiro que aquilo largava.

            Quando o Januário entrava pela porta, a casa iluminava-se. A máquina de costura parecia ganhar vida própria ao toque das suas mãos, como se tocasse música. Ele sabia remendar tudo. Calças já vencidas pelos anos, camisas gastas, roupas tão calejadas pelo tempo que só o seu talento parecia capaz de lhes dar mais uma oportunidade. Era um mestre das agulhas e linhas, daqueles que já não se fabricam.

            Entre ponto e costura, vinha sempre carregado de histórias mirabolantes que deixavam a criançada em êxtase. Quando se picava numa agulha, soltava o seu famoso “com seiscentos…”, expressão herdada, dizia ele, dos tempos em que viveu em Angola. Muito mais tarde vim a saber que o Januário era mais um dos tantos retornados que regressaram sem nada, obrigados a recomeçar do zero numa freguesia vizinha. Talvez por isso valorizasse tanto cada pequeno gesto, cada broa, cada gargalhada.

            E, claro, nunca saía de mãos vazias. No fim do dia, seguia estrada fora, de sacola de pano ao ombro, levando consigo uma broa de milho acabadinha de cozer, talvez a sua jorna. Mas ainda antes disso, tinha direito a uma grande malga de broa com vinho, a tão popular “sopa de vinho” que devorava com gosto para ganhar força para a viagem.

            Não sei se o Januário tinha consciência do lugar que ocupava nas nossas memórias. Mas sei que, para muitos de nós, ele foi mais do que um alfaiate ambulante. Foi personagem, foi alegria, foi companhia. Um daqueles pequenos grandes fragmentos da infância que ficam gravados para sempre, costurados a ponto firme no tecido do tempo. Afinal, que seria da nossa infância sem estas personagens que costuraram, ponto a ponto, as memórias que hoje ainda nos aquecem o coração?

3 comentários:

  1. Olá Rui, adorei ler essa história do Tio Alfaiate,
    realmente ficam gravadas em nossas mentes, lindas histórias que se passaram na nossa infância, e como é bom recordá-las!
    Lembro de muitas, também, são marcantes.
    E o 'tio' não era bobo, sabia o dia certo de ir...kkk
    Votos de felizes dias pela frente.
    Abraços.

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    1. Como não consigo seguir seu blog aqui, ele está na minha lista dos "Blogs Amigos". Estou procurando saber o porquê não consigo seguir, me parece que há um certo limite de blogs a seguir.

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  2. Olá.

    Acho que em toda família há aqueles personagens que nos tocam na infância e que ficam na nossa memória décadas e décadas depois. Também tenho os meus personagens.
    Foi bom ler esse teu texto cheio de afetividade por esse grande personagem costureiro que marcou tua vida.

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