29 outubro 2025


Memórias da “Benda da Tia Lúcia”

            A “Benda da Tia Lúcia”, escrita assim de propósito, à moda antiga da minha aldeia minhota, onde o “B” tomava o lugar do “V” com a naturalidade de quem fala a língua do coração. Diziam os mais velhos, entre risos e certezas, que os “Vês” eram para a gente fina. Nós, gente simples do campo, ficávamos com os “Bês”, que soavam mais verdadeiros, mais nossos.

            Na minha infância, a “Benda da Tia Lúcia” era muito mais do que uma simples mercearia. Era o coração da nossa aldeia. Nessa época, o correio não chegava porta a porta como hoje. Se queríamos saber notícias de familiares distantes, como o meu pai que estava emigrado em França, ou acompanhar os acontecimentos do país e do mundo, tínhamos de nos deslocar até lá.

            Todos os dias, por volta do meio-dia, a Tia Lúcia recebia a correspondência pelo carteiro que vinha da cidade. Eu e a minha mãe íamos com a esperança de encontrar uma carta do meu pai, cheia de carinho e saudade, enquanto o meu avô aguardava ansioso pelo jornal semanal, pronto para se atualizar com as notícias frescas e comentá-las com quem estivesse à volta.

            A “Benda” era um mundo à parte. O cheiro da farinha, do pão fresco e dos enchidos misturava-se com o aroma doce das bolachas e do café acabado de moer. Lá comprava-se de tudo: mercearia para o dia-a-dia, farinha, calçado, pequenas ferramentas e até presentes improvisados para qualquer ocasião. Mas, mais do que produtos, a “Benda” era o lugar onde a vida da aldeia se encontrava.

            Nos dias em que o mau tempo não deixava trabalhar a terra, os mais velhos juntavam-se ali para pôr a conversa em dia. O copo de vinho branco estava sempre à mão, e a sande de chouriço era uma iguaria, acompanhada de risadas, histórias de outrora e comentários sobre os vizinhos. A luz que entrava pela porta parecia aquecer o espaço, iluminando as faces curiosas das crianças e o brilho nos olhos dos adultos. Cada canto da “Benda” contava uma história. A balança decimal rangendo sob o peso dos produtos, o tilintar das moedas, o ranger da porta quando alguém entrava, o murmúrio constante das conversas entre clientes e o barulho da mó do moinho sempre a trabalhar.

            Eu adorava ir à “Benda da Tia Lúcia”. Aquilo era uma pequena aventura, cheia de cheiros, vozes e cores. Lembro-me de ficar a observar a Tia Lúcia atrás do balcão, com o avental impecavelmente branco e o lápis sempre atrás da orelha, sempre pronta a pesar o açúcar, o feijão ou a enrolar o bacalhau em papel. E o melhor de tudo vinha no fim, o troco. Em vez de moedas, muitas vezes ela completava o valor com uma meia dúzia de rebuçados coloridos, embrulhados em papel brilhante. Eu saía de lá com o coração leve e o sabor doce na boca, como se tivesse recebido o maior tesouro do mundo.

            Recordar a “Benda da Tia Lúcia” é como voltar no tempo e sentir novamente a vida simples, mas intensa, da nossa aldeia. É ouvir o riso, sentir o cheiro do pão, o calor humano e a expectativa de uma carta que podia mudar o dia. Mais do que uma mercearia, era o centro da nossa comunidade, um lugar onde memórias e afetos se cruzavam todos os dias.


 

5 comentários:

  1. A Vida, Deus, ou por herança de sangue, poucas pessoas há que tenham sido abençoadas com este duplo dom. Saber desenhar a carvão, as ilustrações dos seus magníficos textos, reflectindo as doces memórias de infância, que todos temos, mas poucos sabemos contar deste modo tão cativante.
    Por isso, hoje, os meus parabéns ao autor deste belo espaço, vão também em duplicado. :)
    Um abraço

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  2. E não era também um lugar onde os clientes iam “matar o bicho” com um cálice de aguardente logo pela manhã? : )
    Essas bendas já não devem existir nas aldeias, pois não? Mais uma tradição que se foi desvanendo aos poucos.

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  3. Sempre tive curiosidade em saber, mas lendo o comentário da Janita, faço agora a pergunta. : )
    O R. Correia é o autor destes desenhos?

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  4. “nós os do Porto podemos trocar os bês pelos vês, mas nunca a liberdade pela tirania.”

    Almeida Garrett

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