Memórias da “Benda da Tia Lúcia”
A “Benda da Tia Lúcia”, escrita assim de propósito, à moda antiga da
minha aldeia minhota, onde o “B” tomava o lugar do “V” com a naturalidade de
quem fala a língua do coração. Diziam os mais velhos, entre risos e certezas,
que os “Vês” eram para a gente fina. Nós, gente simples do campo, ficávamos com
os “Bês”, que soavam mais verdadeiros, mais nossos.
Na
minha infância, a “Benda da Tia
Lúcia” era muito mais do que uma simples mercearia. Era o coração da nossa
aldeia. Nessa época, o correio não chegava porta a porta como hoje. Se
queríamos saber notícias de familiares distantes, como o meu pai que estava
emigrado em França, ou acompanhar os acontecimentos do país e do mundo,
tínhamos de nos deslocar até lá.
Todos
os dias, por volta do meio-dia, a Tia Lúcia recebia a correspondência pelo
carteiro que vinha da cidade. Eu e a minha mãe íamos com a esperança de
encontrar uma carta do meu pai, cheia de carinho e saudade, enquanto o meu avô
aguardava ansioso pelo jornal semanal, pronto para se atualizar com as notícias
frescas e comentá-las com quem estivesse à volta.
A “Benda” era um mundo à parte. O cheiro da
farinha, do pão fresco e dos enchidos misturava-se com o aroma doce das bolachas
e do café acabado de moer. Lá comprava-se de tudo: mercearia para o dia-a-dia,
farinha, calçado, pequenas ferramentas e até presentes improvisados para
qualquer ocasião. Mas, mais do que produtos, a “Benda” era o lugar onde a vida da aldeia se encontrava.
Nos
dias em que o mau tempo não deixava trabalhar a terra, os mais velhos
juntavam-se ali para pôr a conversa em dia. O copo de vinho branco estava
sempre à mão, e a sande de chouriço era uma iguaria, acompanhada de risadas,
histórias de outrora e comentários sobre os vizinhos. A luz que entrava pela
porta parecia aquecer o espaço, iluminando as faces curiosas das crianças e o
brilho nos olhos dos adultos. Cada canto da “Benda” contava uma história. A balança decimal rangendo sob o peso
dos produtos, o tilintar das moedas, o ranger da porta quando alguém entrava, o
murmúrio constante das conversas entre clientes e o barulho da mó do moinho
sempre a trabalhar.
Eu adorava ir à “Benda da Tia Lúcia”. Aquilo era uma
pequena aventura, cheia de cheiros, vozes e cores. Lembro-me de ficar a
observar a Tia Lúcia atrás do balcão, com o avental impecavelmente branco e o
lápis sempre atrás da orelha, sempre pronta a pesar o açúcar, o feijão ou a enrolar
o bacalhau em papel. E o melhor de tudo vinha no fim, o troco. Em vez de
moedas, muitas vezes ela completava o valor com uma meia dúzia de rebuçados
coloridos, embrulhados em papel brilhante. Eu saía de lá com o coração leve e o
sabor doce na boca, como se tivesse recebido o maior tesouro do mundo.
Recordar
a “Benda da Tia Lúcia” é como voltar
no tempo e sentir novamente a vida simples, mas intensa, da nossa aldeia. É
ouvir o riso, sentir o cheiro do pão, o calor humano e a expectativa de uma
carta que podia mudar o dia. Mais do que uma mercearia, era o centro da nossa
comunidade, um lugar onde memórias e afetos se cruzavam todos os dias.

A Vida, Deus, ou por herança de sangue, poucas pessoas há que tenham sido abençoadas com este duplo dom. Saber desenhar a carvão, as ilustrações dos seus magníficos textos, reflectindo as doces memórias de infância, que todos temos, mas poucos sabemos contar deste modo tão cativante.
ResponderEliminarPor isso, hoje, os meus parabéns ao autor deste belo espaço, vão também em duplicado. :)
Um abraço
Obrigado Janita! Assim fico sem palavras.
EliminarAbraço.
E não era também um lugar onde os clientes iam “matar o bicho” com um cálice de aguardente logo pela manhã? : )
ResponderEliminarEssas bendas já não devem existir nas aldeias, pois não? Mais uma tradição que se foi desvanendo aos poucos.
"desvanecendo"
EliminarRealmente já não existem, pelo menos na minha aldeia.
EliminarTambém lá "matavam o bicho" mas eram a horas improprias para a minha idade na época:)
Abraço.
Sempre tive curiosidade em saber, mas lendo o comentário da Janita, faço agora a pergunta. : )
ResponderEliminarO R. Correia é o autor destes desenhos?
Sim, são meus.
EliminarQue talento !
Eliminar“nós os do Porto podemos trocar os bês pelos vês, mas nunca a liberdade pela tirania.”
ResponderEliminarAlmeida Garrett
O Norte e as suas raízes e a sua identidade inconfundível.
EliminarUm abraço.
畫功很好.
ResponderEliminar非常感谢
EliminarEra o Américo Martinho.
ResponderEliminarE, do outro lado da estrada, o António Póvoa.
Apontavam as despesas para serem pagas no final do mês.
Abraço
Também existia. O livro dos fiados.
EliminarUm abraço.
Olá, R.
ResponderEliminarTeu texto me fez viajar no tempo para um lugar que eu não conheço mas que conseguir visualizar através da sua narrativa. Entendo esses falares "nossos", como trocar o V pelo B. Cá no Brasil também temos isso.
Abraços
Muito obrigado Eduardo pelas suas palavras.
EliminarUm abraço.
Gostei muito.
ResponderEliminarMuito bonito este contar. Trouxe-me memórias.
O pai tinha assim uma parecida onde os meus manos estavam ao balcão e mais tarde eu também ainda menina :)
Por causa do troco em rebuçados, certa vez fui trapaceada pelos colegas que me fizeram dar-lhes grande quantidade do frasco dos rebuçados. E o castigo do pai não se fez esperar. 😔
Tudo de bom!
Ainda bem que as minhas memórias despertam a de outros visitantes. è esse o meu objetivo.
EliminarMuito obrigado pela visita e comentário.
Um abraço
Vim retribuir a visita e conhecer o seu blogue - gostei muito deste texto
ResponderEliminarObrigado e volte mais vezes.
EliminarUm abraço.
Na aldeia de meus pais também havia uma venda...
ResponderEliminarGraças por me trazer a infância de volta.
Bom Novembro :)
Muito obrigado.
EliminarAbraço.
Memórias da infância e dos lugares onde se cresceu.
ResponderEliminarGostei muito do texto.
Tudo de bom.
Um beijo.
Muito obrigado.
EliminarUm abraço.
R.Correia,
ResponderEliminarteu texto é uma viagem terna à infância dessas que a gente faz com o coração cheio de cheiros, sons e saudades. A “Benda da Tia Lúcia” não é apenas uma mercearia, é um retrato vivo da alma das aldeias: um espaço onde o tempo andava devagar, o convívio era sagrado e a simplicidade tinha sabor de eternidade.
A forma como descreves os detalhes o avental branco, o lápis atrás da orelha, o tilintar das moedas, o cheiro do pão transforma o texto numa pintura em movimento. Cada imagem carrega um afeto. E o “B” no lugar do “V” é uma escolha poética, um gesto de amor à língua falada com o coração, que dá autenticidade e identidade à narrativa.
Há uma ternura imensa no olhar da criança que recebe rebuçados em vez de troco como se o mundo inteiro coubesse naquele instante de doçura.
É um texto que preserva memórias e devolve humanidade. Lê-lo é como entrar de novo na “Benda”, sentir o calor da luz e o rumor da vida simples que, mesmo distante, ainda mora dentro de nós.
Com admiração e emoção,
Fernanda
Olá Fernanda.
EliminarMuito obrigada pelo seu comentário.
Fico feliz por conseguir transmitir as minhas memórias com o sentimento que realmente me invade quando as escrevo. Espero também conseguir despertar nos leitores "imagens" felizes das suas memórias.
Um abraço.
Parabèms por iste blog, TV Rabiscos, que me traze memorias daquiles tempos. A Benda da tia Luzìa resúltame tanbém muito familiar.
ResponderEliminarUm prazer entrar niste interesante blog.
Agradezer a sua visita e ficamos amigos.
Olá Beatriz. Muito obrigado pela sua visita e comentário.
EliminarClaro que ficamos "amigos blogueiros"!
Um abraço.
Adoro ler as suas histórias, pois levam-me sempre até à minha infância.
ResponderEliminarQuando era criança, também havia uma mercearia assim, como a "Benda da Tia Lúcia", que vendia de tudo e onde todos se encontravam.
Excelente crónica!
Abraços
Muito obrigado Maria.
EliminarUm abraço.
Olá, caro Correia, Feira é sempre um encontro com a natureza,
ResponderEliminarfrutas, legumes, sucos, cereais para abastecermos nossa despensa,
pelo menos por uma semana, até voltarmos novamente à feira.
Votos de um ótimo final de semana, com muita paz.
Abraço, amigo.